foto de uma menina de 7 anos na birmânia, ela está vestida para seu casamento.

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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Gregório e a Esfinge



Ø  Deixo aqui nesse long-blogging as reflexões que me arrisco fazer sobre o texto do espetáculo O Canto de Gregório, realizado pelo grupo Magiluth. Procuro me ater a dimensão social do espetáculo, mas minhas condições de espectador e aprendiz de humanidades.
Ø  Parabenizo a equipe do Magiluth que realiza um trabalho fantástico !!

Gregório é um homem diante da esfinge. Ele é sua própria esfinge e a de cada espectador.
“Decifra-me ou te devoro!”
Gregório sofre por não poder solucionar os vários paradoxos sobre a “bondade”, ou mesmo sobre condição humana e os ideais para com ela. Vejo nele o medo de descobrir que a bondade é uma ideia demasiado ilusória. Pedro Wagner nos transmite essa angústia ao encarnar Gregório em seus clamores.
Percebo como o tema desse espetáculo é importante nos dias de hoje em que as pessoas parecem ter perdido a fé na bondade humana através de conceitos como: “O homem não presta!”.
Contudo o canto de Gregório não é um texto simples. Para tentar fazer-se acreditar na veracidade da bondade Gregório, em seus diálogos consigo ou com os outros personagens, procura aferrar-se a vários sistemas explicativos e corroborantes da existência da bondade, que são derrubados pela ácida ironia das outras personagens. Enquanto Gregório está sempre sério e irritadiço os outros atores trazem o sarcasmo e a ironia para corroerem as atrofiadas respostas de fugas dos paradoxos de Gregório.
É visível como Gregório é devorado ao descobrir que não se sabe ao descobrir que não sabe se é um homem bom ou não. Ele é julgado, dentro ou fora de si, pela morte de uma pessoa. Ele sabe e declara sinceramente que disparou e matou, mas até que ponto isso faz dele uma pessoa má?
Não pensemos que o texto de O Canto de Gregório é apenas provocativo, não é mero jogo de ideias de um texto bem escrito, também não é um texto de perguntas fáceis. Como falei, ele é a esfinge um texto a ser completado e decifrado pelo espectador. Reduzir o espetáculo a mero impressionismo teatral é esterilizar toda a obra sob a forma de mera mercadoria para o consumo “cultural”.
Ao se questionar, Gregório se confronta com o simbólico constitutivo da sociedade ocidental, especialmente os paradigmas que engendram nossa forma moderna de viver. Logo nas primeiras falas, Gregório declara que seu pensamento voa mais alto que suas emoções, há um desprezo destas em favor da racionalidade, um elemento importante do surgimento do pensamento moderno. Gregório espera que a racionalidade possa dar-lhe todas as respostas, as emoções poderiam assemelhar-se à animalidade da pessoa humana, neste contexto.
Operando apenas com a lógica linear, “dura”, ele deseja compreender coisas como a sinceridade, honestidade, altruísmo, generosidade, intencionalidade e bondade. Que demandam um raciocínio ambivalente em certa medida, uma outra lógica de pensamento.
Pode-se perceber como o tempo todo Gregório usa conceitos duros e pré-fabricados, um contra o outro, saindo de uma cilada para outra, debilmente identificando o caráter de verdade em cada afirmação que faz. Ele não consegue criticar a própria lógica de questionamento.
Gregório fica estarrecido ao se dar conta e como a sociedade se constitui pela barbárie. – Como acreditar na bondade humana se nossa forma de viver é sempre violenta em certa medida? – Como é possível ser bom se temos que matar e mastigar outros seres para viver? – A sobrevivência é  também um ato de violência.
No desespero da dúvida que o devora, Gregório busca em Deus uma solução, como obter a bondade, ou ser bom, de maneira genuína? O problema é que ele se dá conta que os atos de bondade, supostas provas de sua existência, não passam de rituais de conduta para que as pessoas possam acreditar-se “boas” ou seria melhor dizer que são conformadas? Conformidade social não é bondade, me parece mais com liberdade negativa.
Ele percebe como as táticas sociais são assimiladas para dissimular a barbárie da forma de viver, anestésicos sociais. Em Jesus Cristo é que Gregório espera encontrar algum ensinamento ou revelação transcendental da bondade. E aí é que Cristo vem sarcasticamente mostrar-lhe que não possível saber nada sobre Deus. O Deus que Gregório busca é na verdade uma projeção de um Macho Onipotente, o mito da sociedade fálica. A bondade seria um risco, um salto para o abismo, não se pode limitar à segurança, à fiança ou a alguma troca. Era preciso dar o primeiro passo em direção a bondade, ou à “não violência”, ser o exemplo, disse o Cristo para Gregório.
Eis que num impulso Gregório decide fazer um pacto de paz consigo, sonhando com o dia em que as diferenças não significassem nada, nada mesmo, elas seriam estupidamente esvaziadas de sentido, mais importante era a Paz. Um ateu concordaria em tudo com o crente, como se amar fosse idêntico a aprovar. Ninguém mais se importaria com nada, sem preocupações todos seriam felizes, rindo como hienas, um riso de tolos, fingindo serem felizes. Ignorar os problemas não solucioná-los.
O prazer em ignorar a realidade, em ser ignorante, é outro anestésico social, um dos mais perigosos. Esvaziamos o valor de tudo através do relativismo onde as diferenças e as tensões sociais entre elas são falsamente anuladas, como que se ficassem invisíveis. Os poderes, contradições, perversidades explorações, crimes, violências que operam e se revelam nelas nas contradições existentes em nossa sociedade são ignoradas sob o pretexto de paz.
Lembro-me de Marcelino Freire em Rasif e seu poema sobre a paz. A paz é muito branca, muito limpa, muito organizada. A Paz precisa é de sangue !!
“Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz? (Rappa – Minha Alma)” – A paz da ignorância é um anestésico muito venenoso.
Nas ciladas da lógica argumentativa linear do relativismo, Gregório e Sócrates não sabem se é melhor ter um princípio é algo válido, ou se ter muitos ou nenhum princípio é válido para viver. O princípio seria uma tentativa de, pelo pensamento limitado, determinar a imprevisível realidade; conceber e assegurar uma forma de ser feliz pelo pensamento já concebido como algo falho. A questão é “Se somos limitados no pensamento, como podemos assumir que este código de conduta dará conta de nos fazer felizes na imprevisibilidade do acaso?” – Não podemos enquadrar a realidade da vida num sistema, capturando-a, assumindo conhecer tudo sobre ela e depois acreditar ter o poder de dizer qual é a formula da felicidade. Esta é a prática são reduzidas à sua utilidade, são esvaziadas em seus sentidos. Tudo possui uma Razão de Ser, cada coisa e cada pessoa é tomada como uma peça que tem sua função pré-determinada e ser feliz é servir a este propósito, “princípio”.
A cena do julgamento de Gregório expõe ainda mais a sociedade de controle na tradição do Direito. A personagem do juiz encarna a indiferença e a falta de alteridade em relação ao réu. A intimidade do réu não tem valor algum diante dos rituais do Direito. O que importa é que decidam se Gregório está certo ou errado, o juiz está ali como algoz apenas, para executar a sentença, o comportamento da personagem mostra como a figura do juiz não exerce a capacidade de mediar a análise das circunstâncias do crime. Essas sensações se confirmam pela atitude do juiz quando sem alguma paciência tenta apressar o julgamento e quando se enfada começa a chupar balas, pirulito, comer salgadinhos. – A sociedade tem pressa em encontrar o culpado, é preciso sentenciar logo alguém para que ele mostre seu poder de coerção.
A personagem do promotor de justiça é muito eloquente, ele tem a mesma pressa e uma sede enorme de atestar que Gregório é sim o culpado, pois o promotor já tem esta certeza, os fatos não mentem, eles seriam autoexplicativos. Para ele, se Gregório matou é logicamente uma pessoa perversa. Ele é incapaz de vez a sinceridade de Gregório. O promotor encarna a cólera da nossa sociedade em manter a barbárie reproduzida para reproduzir sua forma de poder e a forma de viver das pessoas, o status quo.
Se houve transgressão (crime) deve haver um culpado e há demasiada pressa em encontrá-lo e supliciá-lo em praça pública ou televisiva. Esse é o papel do Estado, administrar a barbárie de maneira exemplar para simbolicamente e pragmaticamente afirmar seu poder de controle e destruição, o Estado poderia ser comparado ao deus da morte brincando de deus da vida. Os tribunais encarnam o direito de violência do Estado.
É o júri que procura inserir certa mediação das circunstâncias. Uma vez que já se sabe que Gregório matou de fato alguém, para o júri um dado menos “duro” é importante para a formação de sua opinião: “Gregório é um homem bom?”.
O júri inicia uma inversão da estrutura desumanizada do julgamento que queria através do endurecimento dos fatos fazer “justiça” desconsiderando a importância antropológica do crime. Nem mesmo Gregório acredita na vontade do júri, ele que a esta altura parecia ter certeza de sua pena. Esta ultima pergunta do júri perfura ainda mais a identidade de Gregório sem salvar-lhe, ele não sabe a resposta, não consegue encontrar um só motivo para provar-se bom. Abandonado às ciladas do pensamento ele se desespera completamente. Um desejo ardente por ser bom, mendiga uma misera razão para a autopiedade, para ter fé na pessoa humana. O ator que interpreta Gregório nos faz sentir esta dor.
Ele finda por desejar não pensar, não ver, não sentir, que não exista o pensamento, nem a linguagem, nem o verbo, nem o tempo, nem o ser. Todo o questionamento de Gregório figura como um processo de autodestruição. Me pergunto se um questionamento genuíno não teria sempre certa dose de autoviolência . Gregório se perde nesse processo e é devorado pela esfinge da dúvida ambivalente, é incapaz de ir além da estrutura de seu próprio pensamento. Ele consegue expor certas contradições, mas não todas. A própria forma questionar de Gregório carrega um ritual que supõe uma capacidade encontrar uma verdade genuína inegável. As limitações da linguagem decepcionam nosso Gregório, ele rejeita as emoções e as ambiguidades, por isso sua lógica é linear. Busca que o conceito pré-fabricado se aplique à realidade através de uma espécie de cimento discursivo.
Contudo vejo em Gregório um compromisso com a busca da verdade, ele tem a sede de questionar, pode até ser um anti-herói, mas não se contenta em não ter respostas, a dúvida o corrói, Gregório não suporta ser um ignorante, não suporta ser pessimista em relação à vida, ele busca a todo tempo uma esperança para a vida humana além de sua miséria. Gregório ama a vida, mesmo que não se dê conta disso, é um pessimismo da esperança o que move Gregório.

Acho que essa deveria ser a nossa atitude depois de sermos todos incomodados pelas dúvidas de Gregório, que, se já não eram, passam a ser também as nossas dúvidas. Acho que essa deve ser a nossa atitude, como um tipo de anti-herói, Gregório revela a impossibilidade de viver o amor e a generosidade com uma estrutura de pensamento tão rígida e até desumana, é um desafio à sanidade mental. É preciso aprender a pensar o mundo, a ser no mundo de uma outra forma para não nos destruímos como Gregório. Pobre Gregório.

“Esse é o vírus que eu sugiro que você contraia.
Na procura pela cura da loucura
quem tiver cabeça vai morrer na Praia ... (Djavan – A Carta)”